Polêmica: Produção de presença
Por Rachel Lima
Andrea Daher apresenta no caderno Prosa e Verso, do jornal O Globo, no sábado passado, sua tréplica à resposta de Hans Ulrich Gumbrecht à resenha de seu último livro. Como não li a obra, não há como discutir com o mínimo de seriedade o teor das críticas presentes no embate entre resenhista e resenhado. Mas, já que os textos publicados até agora tocam em um ponto sobre o qual venho tentando refletir, resolvi, além de fazer a divulgação dessa polêmica, utilizá-la para discorrer brevemente sobre nossas práticas intelectuais.
Pra começo de conversa, quero reafirmar que as polêmicas, cada vez mais raras no campo da literatura, cumprem um papel fundamental de estímulo ao debate de ideias. No entanto, não deixo de achar estranho, justamente por considerar que o processo de significação é infinito e inevitavelmente imperfeito e parcial (tema que também é tratado nos textos publicados pelos nomes aqui em confronto), que uma resenha seja respondida pelo autor resenhado. Posso estar enganada, mas sempre que isso ocorre parece-me ser reforçada a tendência à produção dos comentários insossos e anódinos das resenhas publicadas nos suplementos literários e culturais, que, na maior parte das vezes, limitam-se a fazer a publicidade da obra, fugindo de um esforço efetivamente crítico.
A resenha de Daher nega esse padrão e talvez seja justamente por conviver com essa característica de nosso sistema intelectual que ela tenha se sentido incomodada com os dispositivos discursivos utilizados por Gumbrecht para produzir o que ela chama de “efeito de teoria” em seu livro. Dentre eles, destaco aqui o dispositivo de “autorização relacional”, inerente a uma “crítica empática”, que congrega tanto os amigos citados quanto os virtuais amigos leitores (especialmente os brasileiros), e que se traduz também na “intuição” explicitada pelo autor de estar a expor uma “fábula geracional”, que autorizaria o tom confessional por ele adotado.
Fico a me perguntar, no entanto, se a condenação das marcas subjetivas do autor em “Produção de presença” por Daher, para além do julgamento da consistência teórica da obra, não acaba por reafirmar o “topos” da inviabilidade da relação entre crítica e amizade e, até mesmo, entre produção teórica e exposição do sujeito. Alguns sinais presentes nos dois textos da resenhista me levam a essa hipótese. Em primeiro lugar, ela afirma em sua resenha que a referência aos amigos no livro de Gumbrecht visaria garantir “o vigor de sua própria presença no Brasil e a fortuna de seus usos críticos empáticos”. Ok, isso até pode ser verdade, mas não se encontra na sua crítica um argumento que fundamente essa sua afirmação. Além disso, em sua tréplica, Daher faz referência à incompatibilidade da posição filosófica de Gilles Deleuze com a lógica da amizade e faz questão de frisar que a utilização das ideias de Michel Serres acerca das noções de sentido/significação independem de uma relação de amizade com o filósofo, a quem conhece e de quem é tradutora.
Considerando-se a defesa que entrevi nos textos de Daher da necessidade de se aferir conceitual e historicamente a validade de uma teoria, será que seria coerente a utilização de aspectos biográficos em sua avaliação? Nesse sentido, ainda que eu discorde da conveniência da réplica do autor resenhado, considero bastante pertinentes os seus questionamentos ao fato de que a desqualificação de seu estilo acadêmico (que talvez se possa ver como bastante cronístico) e a inferência de que ele seria decorrente do trânsito de Gumbrecht entre a Califórnia e o Brasil não se façam acompanhar da necessária transformação de sua impressão em argumento para avaliar as ideias desenvolvidas no livro.
Bem, não vou transformar o post num ensaio, mas gostaria de ressaltar que eu, particularmente, não considero os usos de dados biográficos em si um mal, muito pelo contrário. Apenas o questiono aqui porque me pareceu que o que Andrea Daher quer atacar é justamente esse nó, no qual a produção de presença vai de par com a construção de uma teoria que não se sustenta em sua argumentação filosófica. Só queria evidenciar que o critério que serve para julgar o texto resenhado deve servir também para avaliar o do resenhista.
Tampouco sou contra o uso retórico dos artifícios da crônica do cotidiano. Menos ainda da associação entre crítica e amizade, assunto que certamente vai ser objeto de outros posts aqui no Observatório. Mas do que não gosto mesmo é da recorrência à ironia. Apesar de essa figura poder ser percebida como estratégica para fazer frente ao marasmo da nossa cena intelectual, penso que ela, sim, tem servido prioritariamente para a “produção de presença”, no sentido pejorativo que Andrea Daher constrói em seu texto. No meu modo de ver, o uso desse recurso é incapaz de fazer avançar o diálogo, aqui entendido como um processo que também pressupõe a distância e a diferença, mesmo quando se está entre amigos. (íntegra da tréplica aqui)
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Publicado em 9 de março de 2011
Oi Rachel,
o Gumbrecht voltou ao assunto nesse sábado passado, e foi bem incisivo, ao mesmo tempo que respeitoso, com relação a essas questões sobre amizades, afinidades e afins. Vc viu?
Vi, sim, vou fazer um post sobre a resposta hoje mesmo. Estava sem tempo no início da semana, pois tinha uma apresentação. Obrigada pela participação na página.