Polêmica 2010 – A cisão no clã do Jabuti
Por Rachel Lima
Certamente, essa foi a polêmica que mais animou os debates nos jornais, revistas, blogs e redes sociais na internet, em 2010. O prêmio Jabuti concedido ao romance Leite derramado, de Chico Buarque, foi questionado publicamente, não apenas pelo valor literário da obra vencedora na categoria Livro de Ficção do ano de 2010, mas também pela suspeita de ter sido ela escolhida em função das posições políticas assumidas por seu autor, especialmente durante a campanha às eleições presidenciais. A celeuma, como não poderia deixar de ser, começa com as acusações de Reinaldo Azevedo, conhecido polemista da revista Veja, que, em seu blog, dá início, a partir de 05 de novembro de 2010, a uma verdadeira cruzada contra a decisão da Câmara Brasileira do Livro. O fato é que o júri especializado deu o primeiro lugar à categoria Romance ao livro de Edney Silvestre, Se eu fechar os olhos agora, mas, segundo o regulamento, a escolha do livro do Ano ficava a cargo dos representantes da CBL, que preferiram premiar a obra de Chico. Nas ácidas e irônicas críticas de Azevedo, sobram farpas para todo lado. Seus ataques são dirigidos aos membros da CBL, que estariam sujeitos à mitificação da figura de Chico Buarque e à lógica midiática incorporada pelo seu editor, Luís Schwarz, da Companhia das Letras, à turma de adeptos da presidente eleita, Dilma Roussef, que, na entrega do prêmio, chegou a entoar o “olê, olê, olê, olá, Dil-má, Dil-má”, a Maria Rita Khel, que, durante a campanha à Presidência da República, havia sido demitida do jornal O Estado de S. Paulo por ter escrito um artigo favorável à candidata petista, etc.
A polêmica deu mesmo pano para manga. O presidente do Grupo Editorial Record, Sérgio Machado, que publicou a obra de Edney Silvestre, resolveu anunciar em carta sua saída do concurso, alegando que “a premiação foi pautada por critérios políticos, sejam da grande política nacional, sejam da pequena política do setor livreiro editorial”. Seguiu-se à carta uma troca de manifestos produzidos por ele e pelo presidente da Editora Companhia das Letras. Os jornais saem à cata de depoimentos, que vão de escritores anteriormente vítimas do mesmo sistema de premiação do Jabuti ao “enfant terrible” Marcelo Mirisola. Um leitor de Azevedo publica na internet a petição “Chico, devolve o Jabuti!” e, como esperado, conta com o apoio entusiasmado do comentarista da Veja e com a adesão de milhares de internautas. Em contrapartida, é lançada outra petição – “Chico, fique com o seu Jabuti” –, que também mobiliza os fãs do autor de Leite derramado. Mas, se na política partidária, cada voto só pode ser contabilizado uma vez, a “guerra das petições” que se travou na rede coloca a nu, entretanto, a impossibilidade de se pensar numa democracia representativa na rede, pois várias das assinaturas constantes na lista a favor da devolução do prêmio por Chico Buarque eram falsas. E aí, pra encompridar um pouco mais a querela, entra em cena Caetano Veloso, um dos nomes falsos presentes na lista anti-Jabuti-para-o-Chico, que, em sua coluna do jornal O Globo, volta suas críticas para a covarde utilização de pseudônimos alheios na internet e para a mesquinharia das reações que visariam atingir o compositor e escritor Chico Buarque, lançando mão de uma espécie de oportunismo político, que já vinha desde a campanha para a Presidência. Talvez para tentar provar que não se tratava apenas disso, Reinaldo Azevedo ainda vem à carga para fazer uma espécie de close reading de alguns fragmentos da obra musical e literária de Chico, visando desqualificá-lo tanto como compositor quanto como escritor. E até mesmo Shakespeare, um dos autores a quem, segundo Azevedo, Chico deveria alguns de seus poucos belos versos, é conclamado para servir de argumento contra o prêmio por ele recebido.
Caberia ao blog de Luís Nassif, por sua vez, centrar o foco nas relações espúrias mantidas entre a revista Veja, na qual o blog de Azevedo fazia retumbar a campanha anti-Chico, e a Editora Record, denunciando o pacto que garantia aos livros de jornalistas da grande mídia, como Mário Sabino, Merval Pereira, Reinaldo Azevedo e Diogo Mainardi, um esquema milionário de divulgação bancado pela Record, a quem se retribuía com a publicação de resenhas favoráveis à turma nas páginas da revista de maior circulação no País.
Segundo o editor do caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, a querela do Jabuti reacendeu o clima ideológico dos anos 1960, e nela estariam em jogo não apenas contendas editoriais, que já vinham de longa data, mas também a disputa pelo prestígio e, principalmente, “a recente politização da cultura no país, travada pela militância na internet”.
A polêmica, como se vê, teve o mérito de expor alguns dos muitos fatores que intervêm no processo de atribuição do valor literário, questionando o dogma da autonomia da arte e abalando o sistema de crenças, considerado por alguns como fundamental para a justificação do papel cumprido pela literatura e pela crítica literária na sociedade moderna. Os discursos produzidos a respeito certamente oferecem material para amplas análises do campo literário e intelectual brasileiro, o que, evidentemente, não vai ser feito no curto espaço destinado ao post de nosso blog. Do mar de opiniões publicadas a respeito, o Observatório da Crítica selecionou para publicação, até o momento, 44 textos, que consideramos mais significativos, e que podem ser consultados aqui. Evidentemente, agradeceremos aos leitores do blog que nos indicarem outras manifestações consideradas relevantes. Todos os textos foram ordenados cronologicamente, de modo a proporcionar àqueles que quiserem se debruçar sobre o assunto uma visão linear dos lances desse jogo que, pelo visto, ainda está longe de terminar. Haja vista a polêmica que agora se centra na relação entre as recentes ações de Ana de Hollanda, irmã de Chico Buarque e atual Ministra da Cultura, no campo dos direitos autorais, e os interesses da elite da classe artística brasileira. Mas esta está apenas começando…
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18 de fevereiro de 2011